viernes, 25 de julio de 2008

Stalin-Un novo olhar



Comentário sobre o livro "Stalin - Um novo olhar", Rio de Janeiro,

Editora Revan, 2003


João Quartim de Moraes*

Requer coragem intelectual desafiar o maciço e tenaz preconceito que cerca a imagem de Stalin, indissoluvelmente associada, para a grande maioria de nossos contemporâneos, mais ainda do que ao exercício ditatorial do poder político soviético, ao uso crescente de métodos policiais de controle e aniquilamento dos oponentes. Coragem ainda maior era preciso para publicar, em 1994, quando longas colunas de desertores, perplexos e desanimados, abandonavam as fileiras do comunismo, um estudo propondo-se a “redescobrir a verdade revolucionária sobre o período dos pioneiros”. O próprio Ludo Martens reconhece, no Prefácio de seu estudo político-biográ fico, não ser fácil “levantar-se contra o furacão da propaganda anti-stalinista” . Para enfrentar a empreitada, dispunha de um aprofundado conhecimento histórico e de uma arraigada convicção de estar reparando injustiças e desmistificando imposturas. Com efeito, como bem assinalou o editor Renato Guimarães em sua apresentação à tradução brasileira, publicada exatamente meio-século depois da morte do homem cuja memória foi objeto de combates tão ásperos como os que em vida ele próprio enfrentou, “é um livro muito documentado, que resulta de anos de trabalho paciente e minucioso de pesquisa”.

Antes mesmo de abrir o livro, parecia-me que, se Stalin tinha muitos defeitos, os burgueses e os imperialistas detestam-no, sobretudo por suas qualidades. Ganhei muito em começar a leitura pelo começo: a apresentação de Renato Guimarães, com efeito, repõe a questão com a lúcida serenidade e a honradez intelectual dos que não se impressionam com o alarido das idéias dominantes, mesmo quando envolvidas em celofane “de esquerda”. Distingue com precisão a importância da contribuição de Martens das questões que ele deixou em aberto ou respondeu insatisfatoriamente , observando, notadamente, não ser aceitável a suposição de que, “não fossem as deserções e traições a Stalin”, “tudo estaria bem na URSS”1 .

Mesmo porque não se pode confundir Khruschev com Gorbachev, nem, muito menos, com Boris Ieltsin, o czar da máfia. Afinal, durante as mais de três décadas e meia que transcorreram entre a ascensão de Khruschev ao poder e o colapso de 1991, a URSS não somente assegurou a toda a humanidade o equilíbrio militar de forças, como também internamente, preservou os valores socialistas evocados num sóbrio e equilibrado e, por isso mesmo, ainda mais convincente depoimento pessoal de Renato Guimarães:

“[...] havia ainda no povo (da URSS) muito apoio e crença no socialismo. Estava disseminado na população um espírito de solidariedade comunitária que jamais encontrei em outro país, embora tenha viajado bastante. O emprego com salário era assegurado a todos, os direitos sociais básicos – educação, saúde, habitação, transporte público eram gratuitos para todos e eram atendidos com eficiência e dedicação pelos profissionais que deles se ocupavam. Os alimentos de largo consumo -pão, leite, vegetais, carne - eram subsidiados pelo Estado e vendidos a preço baixo no comércio, num sistema compensado por preços altos nos artigos de luxo e supérfluos. Também a vida cultural – teatro, cinema, música, ballet, literatura, museus - era largamente subsidiada, para tornar-se hábito disseminado na população. O padrão de vida material era na média modesto, porém sem fortes contrastes e no mínimo decente para todos”2 .

Por isso, os muitos que, na esquerda, para diabolizá-lo, negam-lhe compulsivamente qualquer mérito, acabam fazendo coro com a propaganda burguesa, a neoliberal e até mesmo a neonazista. Bastará um exemplo: na Alemanha reunificada sob a égide do reacionário Kohl, toda uma "escola" de historiadores anti-comunistas de choque esforça-se por provar, através de hipóteses que seriam apenas ridículas se o assunto não fosse trágico, que o ataque de surpresa de Hitler à União Soviética em 1941 foi "preventivo" , porque Stalin preparava uma ofensiva contra o III Reich 3.

Não esconder suas simpatias e suas antipatias não é um defeito, antes um ato de sinceridade para com o leitor. Às vezes, porém Ludo Martens deixa-se levar pelo zelo antitrotskista em detrimento do aprofundamento histórico-crítico dos grandes temas controversos. Assim, no segundo capítulo, que trata da construção do socialismo num só país, consagra-se quase exclusivamente a criticar a posição politicamente derrotista de Trotski, que fazia depender a possibilidade de avançar no rumo do socialismo de uma cada vez mais improvável vitória revolucionária do proletariado nos países europeus economicamente avançados. Só no final deste capítulo, muito de passagem, e ainda assim para chamá-lo de “sombra obscura” de Trotski, refere-se a Bukharin (p. 61). Não informa que foi ele, e não Stalin, o principal teórico do “socialismo num só país”. Nem, portanto, que no estudo Problemas da edificação socialista, publicado em 1926, Bukharin critica contundentemente as concepções de Trotski sobre a impossibilidade “de a classe operária russa se manter no poder e transformar sua dominação provisória em ditadura socialista durável sem o apoio governamental direto do proletariado europeu”. “Nenhuma dúvida é possível nesta questão”. Bukharin classifica essas teses de Trotski (que fazem parte de um texto publicado em 1922, quando a República dos Soviets lutava desesperadamente para sobreviver) como “a tradução russa da variante social-democrata de Bauer” e acrescenta que assim se explica porque Trotski “está lado a lado com o renegado Korch [...] e seus amigos 4”.

A consolidação do fascismo na Itália, a chegada ao poder, na Alemanha, de Adolf Hitler com o claro objetivo de destruir o Partido Comunista, então o maior do mundo depois do soviético, a escalada bélica de Mussolini, da Etiópia à intervenção na Espanha para apoiar a sedição reacionária de Franco e consortes, foram configurando mais e mais, ao longo dos anos 30, o espectro de uma guerra planetária pior ainda que a de 1914-1918. A situação dramática da União Soviética, cercada por potências imperialistas hostis, empenhadas em varrê-la da superfície do planeta, exigia iniciativas rápidas e audaciosas: “havia um prêmio para a ação pronta e decidida” 5. Isaac Deutscher, em seu Stalin, esforçando-se para não deixar a aversão política que seu biografado lhe inspira atropelar seu dever de historiador, reconheceu que seu (da URSS) aparelho material de produção, que em torno de 1930 era ainda inferior ao de qualquer nação européia de médio porte, tinha se expandido tanto e tão rapidamente que a Rússia é agora (em 1949, quando publicou-se a primeira edição deste livro de Deutscher) 6 o primeiro poder industrial na Europa e o segundo no mundo. Durante pouco mais de uma década[...] sua população urbana cresceu cerca mais de trinta milhões. O número de escolas de todos os graus foi impressionantemente multiplicado. A nação inteira foi mandada para a escola 7.

O alcance e os limites históricos dos Planos Qüinqüenais lançados por Stalin são sobejamente conhecidos. Viabilizaram extraordinários êxitos econômicos, que em poucas décadas fizeram da URSS a segunda potência mundial, após terem assegurado a produção bélica necessária para derrotar e aniquilar o nazismo. Caracterizemo- los ou não como socialistas, sem o colossal esforço da industrializaçã o acelerada dos anos 1930, a República dos Soviets não teria sobrevivido à sanha dos que queriam apagá-la do mapa-múndi. O heroísmo do povo soviético não explica tudo.

O sétimo e mais longo capítulo do livro, “O grande expurgo” (pp.163-247) , enfrenta o lado sombrio do regime de Stalin. É incontestável que assim como durante a revolução francesa de 1789-1793, os chefes da reação feudal-absolutista, derrotados no plano interno, apelaram para a intervenção armada das grandes potências, os contra-revolucioná rios russos de 1917-1921 fizeram causa comum com os governos imperialistas dispostos a sufocar no nascedouro a República dos Soviets. O custo humano destas intervenções foi imenso. “Durante a guerra civil, que fez nove milhões de mortos, a burguesia combateu os bolcheviques com as armas na mão. Derrotada, o que poderia fazer?[...] Preparar as condições do golpe de Estado burguês” (p. 166). Para continuar a guerra civil por outros meios, a reação derrotada recorreu, com efeito, aos métodos conspirativos. Procurando garantir a objetividade dos fatos que reconstitui, o autor cita quase sempre aqueles adversários da revolução que reconheceram espontaneamente, em livros publicados na Europa Ocidental, terem participado de atos de sabotagem e de terrorismo, inclusive de tentativas de assassinar Stalin (p. 171).

Decidir se o terror bolchevista era ou não inelutável é tão problemático quanto saber se sem a guilhotina os jacobinos teriam levado a suas plenas conseqüências a revolução democrática burguesa na França. Para os que o consideram congenitamente propenso ao despotismo e ao terrorismo de Estado, sequer se põe a questão de explicar como o poder exercido por Stalin assumiu caráter terrorista: ele já o seria desde sempre. Os fatos são mais complexos. Em 1º de dezembro de 1934, Kirov, que ocupava o segundo lugar na hierarquia de comando do regime, foi assassinado. Segundo Ludens, “a primeira reação de Stalin foi desordenada e refletia certo pânico” (p. 177). Só alguns meses depois, convencido de que o crime havia sido o prólogo de um golpe de Estado, ele desencadeou a campanha repressiva que culminou nos expurgos de 1937-38, cujos episódios mais célebres são os processos de Moscou, que liquidaram boa parte da chamada “velha guarda” bolchevista. No tópico que lhes consagra (“O processo do grupo social-democrata bukharinista” , pp.195-217), Martens exibe os limites de sua objetividade. Um exemplo, entre outros, que concerne a Bukharin: em 1936, enviado a Paris, ele foi convidado a exilar-se e fundar um jornal de oposição no estrangeiro. Respondeu que não queria viver fora da Rússia. Martens comenta, após referir o episódio: “sua resposta evasiva demonstrava que ele não adotava uma atitude de princípio” frente “à proposição provocadora de dirigir uma revista antibolchevique no estrangeiro” (p. 202). Mais objetivo teria sido notar que a despeito de suas hesitações e, provavelmente, de um certo desalento, Bukharin voltou para a pátria socialista, embora soubesse ser muito grande a probabilidade de ser atingido pelo grande expurgo. Ainda teve tempo, antes de ser processado e executado, de dirigir o Izvestya e de participar da redação da nova Constituição soviética.

O ano de 1936 marcou o início do que viria a ser o primeiro ato da II Guerra Mundial. Na Espanha, onde a Frente Popular vencera as eleições, uma sedição militar-fascista comandada pelo grande carniceiro Francisco Franco recebeu forte apoio bélico de Hitler e de Mussolini, por mar, terra e ar, além da simpatia de Salazar. A França e a Inglaterra recusaram-se reiteradamente, em nome da “neutralidade” , a vender armas para o governo legítimo da República espanhola. Do governo conservador inglês de Baldwin não se poderia esperar qualquer simpatia pelo povo espanhol em armas 8. Mas de um governo de Frente Popular, como também era o francês, chefiado pelo socialista Léon Blum, só a mais hipócrita covardia explica que tenha abandonado à sanha do nazi-fascismo os que defendiam na Espanha o mesmo programa. O ódio cínico da direita francesa, que proclamava descaradamente preferir Hitler à Frente Popular, não justifica de modo algum a atitude infame de Léon Blum, mas explica a vergonhosa capitulação da França em 1940.

O governo de Stalin foi o único que assumiu o risco de lutar ao lado da República espanhola. Entretanto, ao tratar deste período, em vez de evocar a participação dos soviéticos na luta do povo espanhol contra o fascismo, Ludo Martens, deixando-se levar uma vez mais pelo zelo polêmico contra o trotskismo, consagra o oitavo capítulo a uma crítica contundente do “papel de Trotski às vésperas da II Guerra Mundial”. Muito mais importante teria sido analisar o papel traidor da social-democracia na guerra civil da Espanha.

Poucas vezes como naquele momento da história universal, em que se exacerbava a polarização internacional opondo os amigos e os inimigos da União Soviética colocou-se, para cada um e para a opinião pública em seu todo, a impostergável necessidade de tomar partido. Para o movimento operário internacional e para o conjunto das forças antifascistas, a hora era de cerrar fileiras em defesa da República espanhola e da União Soviética. Sem dúvida, esta polarização contribuiu para cristalizar na URSS uma rígida ditadura em que se combinavam a superposição do Partido comunista à máquina do Estado e a extrema concentração deste poder burocratizado na pessoa do dirigente supremo. Qual povo, entretanto, resistiu com maiores sacrifícios e abnegação aos exércitos nazistas?

No primeiro tópico do capítulo 9 (“Stalin e a guerra anti-fascista” ), Ludo Martens põe a nu toda a perfídia da diplomacia francesa e britânica, que se recusavam, recorrendo aos mais torpes artifícios, a concluir uma aliança militar com o Estado soviético, única maneira de colocar o nazi-fascismo na defensiva. É que, na verdade, estavam empenhadas em dirigir contra a URSS os ânimos guerreiros do expansionismo nazista. Responde assim com incontestável rigor histórico aos numerosos plumitivos do aparelho ideológico do capital que, com inigualável hipocrisia, afetam indignação a propósito do pacto nazi-soviético de 1939, ocultando que constituiu a réplica, estrategicamente lógica, ao pacto liberal-nazista de 1938, concluído em Munique, entre Daladier, Chamberlain (chefes de governo respectivamente da França e da Inglaterra) e Hitler, ao qual foi entregue a Tchecoslováquia. (O governo soviético, a despeito do tratado de defesa mútua que havia assinado com o governo tcheco, foi mantido fora das negociações anglo-franco- alemãs).

A análise da guerra patriótica do povo soviético contra o nazismo (do tópico “O dia do ataque alemão” ao final do capítulo 9) restabelece a verdade histórica grotescamente deformada pelo anti-comunismo militante. Deixemos de lado os admiradores mais simplórios do Tio Sam, que, conhecendo da II Guerra Mundial sobretudo os filmes de Holywood, imaginam que o curso da guerra virou graças ao festejado desembarque anglo-estadunidense na Normandia, em junho de 1944. Os nazistas já haviam então sido destroçados em Stalingrado (1942-1943) e em Kursk (1943) pelo Exército Vermelho. Mas tampouco Isaac Deutscher faz justiça aos fatos ao admitir apenas que “a regeneração do Exército, de sua moral e de seu escalão de comando foi uma das mais notáveis realizações da Rússia, para a qual algum crédito era devido a Stalin” 9. Toda avaliação comporta inevitável influxo subjetivo, mas aqui, o eminente historiador agride até o bom senso. Se Stalin, como ele procura demonstrar com zelo crítico comparável ao zelo apologético de Martens, era o ditador temido e terrível da União Soviética, se ele concentrava em suas mãos as decisões de alcance estratégico, seu crédito na direção da guerra de 1941 a 1945, notadamente na condução da gloriosa contra-ofensiva do Exército Vermelho e do povo soviético contra as hordas hitlerianas, não há de ter sido apenas “algum”. Não se lhe pode negar ter conduzido seu povo para uma vitória militar decisiva.

A derrota, após a morte de Stalin, numa surda e violenta luta nos bastidores do poder de Estado soviético, do grupo que lhe estava diretamente ligado e a publicação, por iniciativa de Nikita Khruschev, do célebre relatório apresentado ao XX Congresso do PC soviético em 1956, transformaram a imagem do até então “Guia Genial dos Povos” na de um déspota frio e sanguinário. Diferentemente dos “jacobinos moderados” de 1794, que guilhotinaram Robespierre, Khruschev e seu grupo de “thermidorianos” soviéticos tiveram de fuzilar Beria no lugar de Stalin. Tentavam, destarte, exorcizar as violências e zonas de sombra da construção do socialismo. Mas um exorcismo não é uma explicação. Só os simplórios levaram a sério a tese de que o grande expurgo e o terror vermelho foram decorrências do “culto à personalidade” de Stalin.

Ludo Martens teria atingido melhor seu objetivo principal, desmistificar os satanizadores de Stalin, se tivesse se abstido de amalgamar suas opiniões e convicções pessoais com o trabalho do historiador. Assim, no tópico do capítulo final consagrado aos “inimigos reabilitados” por Khruschev, ele se refere aos “oportunistas e inimigos do leninismo, enviados a justo título à Sibéria, sob Stalin” (p. 337). Tal ao menos como está redigida, a frase sufraga o envio à Sibéria de culpados de delito de opinião. Soljenitsin, um dos mais célebres reabilitados, era sem dúvida um ardoroso reacionário e um apologista da contra-revoluçã o. Mas, na medida em que manipulou palavras e não bombas, em que agrediu a revolução com frases e não com atentados, não nos parece justo achar justo que tenha sido enviado à Sibéria.

Para bom leitor, meio epílogo basta. Deixemos os liberalóides de todos os gêneros fremir de horror à simples menção de seu nome 10: a burguesia internacional detesta Stalin sobretudo pela extremamente incômoda lembrança da bandeira vermelha tremulando no Reichstag de Berlim em 1945. Os marxistas, especialmente os comunistas, têm o dever intelectual e político de não deixar o debate sobre Stalin ser monopolizado pelos reacionários. Na medida em que, até por suas unilateralidades (ou “rasgos de paixão” 11 ), reanima este debate, o livro de Ludo Martens merece ser lido e discutido.


* Professor do Departamento de Filosofia, IFCH, Unicamp.

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1 Stalin, apresentação, p. 11.

2 Ib., pp. 12-13.

3 Assim, Der Spiegel (6) 1996, pergunta na capa quem foi “o agressor”, Hitler ou Stalin. A resposta, apoiada em obras então recém-publicadas de três historiadores alemães empenhados em melhorar a imagem do grande celerado da cruz gamada, é de que foi Stalin. Com atraso de vários anos, esta mistificação historiográfica de neo-liberais e neo-nazistas foi retomada, entre nós, em patamar intelectual bem mais baixo, pelo anti-comunista profissional O.de Carvalho, num artigo publicado na Folha de São Paulo de 18-XII-2003, sob o título, de indigente ironia, “A grandeza de Josef Stalin”.

4 Bukharin, Le socialisme dans un seul pays, Paris, UGE (Coleção 10-18), 1974, pp. 255. O editor francês não esclarece se a ênfase no texto de Trotski é dele próprio ou de Bukharin. O livro é uma coletânea de artigos de Bukharin, publicados no Pravda, em Cadernos do Comunismo ou então sob forma de brochuras, todos datan-do de 1925-26. O responsável pela compilação, J. L. Dallemagne, retoma globalmente, em sua apresentação dos textos, o ponto de vista trotskista sobre a questão, condenando, com a impertinente arrogância do esquer-dismo intelectual francês, a “traição” de Bukharin, ao “renunciar à revolução internacional, preferindo-lhe a construção ilusória do ‘socialismo num só país’, isto é, subordinando os interesses do proletariado mundial aos do Estado soviético”. A acusação é ritual na liturgia trotskista. Formulada nesse grau de primarismo, não merece ser discutida, mesmo porque não se pode levar a sério a pretensão de Monsieur Dallemagne e consor-tes de falar em nome do “proletariado mundial”. É de resto muito francesa a opinião de que se prefere um programa político (no caso, o “socialismo num só país”) a outro (a revolução mundial) como se escolhe um prato no cardápio de um restaurante. Mais patética é a caracterização do programa de Bukharin como uma “ilusão criminosa”. Pobre Bukharin! Seu destino era mesmo ser criminalizado! Cf. a apresentação de Dallemagne a Le socialisme dans un seul pays”, op., cit., pp. 32-3.

5 Cf. Thomas Angotti, “The Stalin Period: opening up History”, Science and Society, 52 (1), 1988, p. 19.

6 As passagens entre parêntesis são minhas (JQM).

7 Isaac Deutscher, Stalin, Londres, Penguin Books, 1966, p. 553.

8 Vale lembrar que as forças sediciosas se encontravam concentradas em larga medida no Marrocos, às ordens do general Franco. Compunham-se de tropas coloniais, inclusive legionários, e de contingentes marroquinos, recrutados nas camadas mais atrasadas das regiões sob “protetorado" espanhol. Mercenários aguerridos, sedentos de pilhagem, bem treinados e equipados, os moros de Franco tinham de fazer junção na Andaluzia com as tropas do outro chefe golpista, Queipo de Llano, para retomar a ofensiva. O problema era fazê-los atravessar o estreito de Gibraltar. A maioria dos navios de guerra espanhóis, graças à vigilância democrática dos marinheiros e dos suboficiais, permanecera com a República, bem como boa parte da Força Aérea (a única arma onde os oficiais, em sua maioria, recusaram-se a participar do golpe). Nessa hora difícil, Hitler e Mussolini tiraram Franco do impasse. Em 29 de julho de 1936, menos de duas semanas depois de desfechado o golpe, a Luftwaffe pôs em funcionamento uma ponte aérea entre Tetuã (Marrocos) e os aeroportos andaluzes de Sevilha e de Jerez. Em dois meses, numa ofensiva fulminante acompanhada das piores atrocidades contra os defensores da República (em Badajoz correram literalmente rios de sangue; em Toledo, mais “higiênicos”, os fascistas realizaram suas rotineiras execuções em massa à beira da fossa comum), as tropas coloniais de Franco chegaram às portas de Madri. Lá foram detidas, entretanto, pelos operários e estudantes do glorioso 5º Regimento de Milicianos, organizado e comandado pelo comunista Enrique Lister.

9 Ib., p. 484.

10 Os mais desonestos continuarão a fabricar caricaturas grotescas, porque vivem disso. Um certo Stéphane Courtois organizou, com o objetivo de imputar ao comunismo a responsabilidade de hecatombes humanas iguais ou piores que as dos hitlerianos, um Livre noir du communisme, distribuído com grande apoio "mediá-tico", no qual, através de manipulações contábeis, o número das vítimas do comunismo é exponencialmente engrossado. De qualquer modo, se é para enumerar, ainda que os comunistas fossem responsáveis, desde 1917, pela cifra grosseiramente exagerada por Courtois e outros dogues adestrados no canil mediático da reação, teriam matado muito menos do que o colonialismo.

11 A expressão é da apresentação de Renato Guimarães, p. 13.

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